segunda-feira, 17 de maio de 2010

PERTENCER




Pertencer




Um amigo meu, médico, assegurou-me que desde o berço
a criança sente o ambiente, a criança quer:
nela o ser humano, no berço mesmo, já começou.


Tenho certeza de que no berço a minha primeira vontade foi a de pertencer.
 Por motivos que aqui não importam,
eu de algum modo devia estar sentindo que não pertencia a nada e a ninguém.
 Nasci de graça.


Se no berço experimentei esta fome humana,
ela continua a me acompanhar pela vida afora, como se fosse um destino.
A ponto de meu coração se contrair de inveja e desejo quando vejo uma freira:
 ela pertence a Deus.


Exatamente porque é tão forte em mim a fome de me dar a algo ou a alguém,
é que me tornei bastante arisca: tenho medo de revelar de quanto preciso e de como sou pobre.
Sou, sim. Muito pobre. Só tenho um corpo e uma alma. E preciso de mais do que isso.


Com o tempo, sobretudo os últimos anos, perdi o jeito de ser gente.
Não sei mais como se é.
 E uma espécie toda nova de "solidão de não pertencer"
começou a me invadir como heras num muro.


Se meu desejo mais antigo é o de pertencer, por que então
 nunca fiz parte de clubes ou de associações?
Porque não é isso que eu chamo de pertencer.
O que eu queria, e não posso,
 é por exemplo que tudo o que me viesse de bom de dentro de mim
eu pudesse dar àquilo que eu pertenço.


Mesmo minhas alegrias, como são solitárias às vezes.
 E uma alegria solitária pode se tornar patética.
É como ficar com um presente todo embrulhado em papel enfeitado de presente nas mãos
- e não ter a quem dizer: tome, é seu, abra-o!


Não querendo me ver em situações patéticas e, por uma espécie de contenção,
evitando o tom de tragédia,
raramente embrulho com papel de presente os meus sentimentos.


Pertencer não vem apenas de ser fraca e precisar unir-se a algo ou a alguém mais forte.
Muitas vezes a vontade intensa de pertencer vem em mim de minha própria força -
eu quero pertencer para que minha força não seja inútil
e fortifique uma pessoa ou uma coisa.


Quase consigo me visualizar no berço,
quase consigo reproduzir em mim a vaga
e no entanto premente sensação de precisar pertencer.
Por motivos que nem minha mãe nem meu pai podiam controlar,
eu nasci e fiquei apenas: nascida.


No entanto fui preparada para ser dada à luz de um modo tão bonito.
Minha mãe já estava doente, e, por uma superstição bastante espalhada,
 acreditava-se que ter um filho curava uma mulher de uma doença.
 Então fui deliberadamente criada: com amor e esperança.


Só que não curei minha mãe.
E sinto até hoje essa carga de culpa: fizeram-me para uma missão determinada e eu falhei.
Como se contassem comigo nas trincheiras de uma guerra e eu tivesse desertado.
Sei que meus pais me perdoaram por eu ter nascido em vão e tê-los traído na grande esperança.


Mas eu, eu não me perdôo.
 Quereria que simplesmente se tivesse feito um milagre: eu nascer e curar minha mãe.
Então, sim: eu teria pertencido a meu pai e a minha mãe.
 Eu nem podia confiar a alguém essa espécie de solidão de não pertencer porque,
 como desertor, eu tinha o segredo da fuga que por vergonha não podia ser conhecido.


A vida me fez de vez em quando pertencer,
 como se fosse para me dar a medida do que eu perco não pertencendo.
E então eu soube: pertencer é viver.
Experimentei-o com a sede de quem está no deserto e bebe sôfrego
 os últimos goles de água de um cantil.
 E depois a sede volta e é no deserto mesmo que caminho!



Clarice Lispector




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